por Ricardo Ruiz.
O SESC – Serviço Social do Comércio de Ribeirão Preto, munícipio de 674.000 habitantes (IBGE, 2016) distante 315Km da capital do Estado de São Paulo, realizou, durante os dias 11 e 30 de setembro o festival denominado #hashtag. Parte de um calendário anual de atividades, #hashtag define-se como uma reunião de intervenções, bate-papos, oficinas, experimentações e provocações sobre as novas tecnologias e suas potenciais formas de utilização – seja como suporte, meio ou fim -em práticas humanizadoras. (SESC, 2016).
Como parte do festival, entre os dias 28 e 30 de setembro, foi realizada a Vivência Contos de Ifá. Contos de Ifá são laboratórios de inovação para a promoção da identidade negra e feminina de comunidades tradicionais. A constituição desses laboratórios é baseado no desenvolvimento de web-games roteirizados a partir da mitologia afro-brasileira. A metodologia é pautada por tecnologias abertas que buscam enfrentar a intolerância religiosa e o extermínio da juventude negra. Durante os dias de vivência proposto, buscar-se-ia apresentar, para a comunidade ribeirão-pretense, como se dão as atividades que constituem esse laboratório: seu histórico, método, resultados alcançados e perspectivas de futuro.
A vivência – com 3horas diárias, o que totalizou 9 horas – foi conduzida por Mãe Beth de Oxum (Maria Elizabeth Santiago de Oliveira), Ricardo Borges Brazileiro e Ricardo Ruiz Freire, propositoress e coordenadores dos laboratórios de inovação Contos de Ifá. Neste momento, cabe-nos uma reflexão: denominamos laboratórios de inovação a crescente aplicação de metodologias abertas que promovam a co-criação de tecnologias diversas, dentro de um processo de aprendizagem, produção e gestão que tendem a incluir os setores científico e tecnológico, empresarial e governamental concomitante a organizações da sociedade civil e cidadãs e cidadãos. (SCHIAVO, 2014). O termo surgiu no 1996 White Paper on Science and Technology (DACST, 1996), e nos dias de hoje pode ser definido como um desenvolvimento inclusivo que apóia usuários e cidadãos como propositores de inovações que incorporem elementos de desenvolvimento social e econômico (HART, 2015). Estas metodologias, a priori, propões uma nova forma de produção, onde usuários e consumidores não são vistos como atores externos ou público alvo, mas como parte ativa do sistema em desenvolvimento (SCHIAVO, 2014).
De volta à Ribeirão Preto, é importante notar o perfil do público participante da vivência: todas as participantes eram mulheres, negras, entre 23 e 66 anos, com diferentes perfis sócio-econômico – cozinheiras, gestoras públicas, estudantes, produtoras culturais, enfermeiras. Seu objetivo comum na oficina pode ser identificado como a busca do fortalecimento de uma rede de atores focados no combate ao racismo, na valorização da identidade negra e no desenvolvimento sócio econômico de seus pares. Esse perfil foi fundamental para redirecionar o método e os conteúdos a serem apresentados durante as três noites de convívio.
No primeiro dia, entre 18:30 e 21:30, com todas as participantes em roda e a apresentação em um projetor digital, foi mostrado um histórico do Centro Cultural Coco de Umbigada. Responsável pelo desenvolvimento do laboratório de inovação cidadã Contos de Ifá, o centro cultural é uma figura jurídica de direito privado sem fins lucrativos que desenvolve suas atividades no tangente entre cultura de matriz africana, comunicação social e tecnologias digitais. Com dezessete anos de idade, as atividades do centro cultural vão desde oficinas de construção de tambores, passando por oficinas rítmicas, de dança, expressão artística, desenvolvimento de software e produção audiovisual. Possui também um estúdio de gravação sonora, uma ampla área para encontros e aulas, bancadas modulares com computadores laptops e desktops e uma rádio FM em 89,5MHz com 150 MWz de potência, uma parceria de 4 anos com o Ministério da Cultura e coletivos de mídia independente, como a Rádio Amnésia e a sub>mídia. Realiza também, dentre outros eventos, a tradicional Sambada de Coco do Guadalupe, em Olinda, Pernambuco, todo o primeiro sábado de cada mês, há 15 anos. Tudo isso em um espaço regido por uma casa religiosa de matriz africana, o Ilê Axé Oxum Karê. Nesse rico ambiente de produção simbólica e econômica que se desenvolve, desde 2010, o laboratório para construção de web games roteirizados a partir das mitologias de matriz africana.
No segundo dia de vivência foi apresentada a plataforma Contos de Ifá – contosdeifa.com – e seu processo de desenvolvimento, de 2010 até o presente. Iniciado com um subsídio do Ministério da Cultura, teve, ao longo de sua história, apoio da Secretaria de Cultura da Bahia, Fundação para as Artes e o Patrimônio Histórico do Pernambuco – FUNDARPE, Fundo Brasil de Direitos Humanos e do Prêmio Banco do Brasil de Tecnologias Sociais. Iniciado como uma alternativa ao modelo de telecentro para acesso à internet, o laboratório contou com diversas fases de produção: oficinas em escolas técnicas da Zona da Mata do Estado de Pernambuco, laboratórios abertos para a comunidade do terreiro para a programação dos jogos educativos e das trilhas sonoras, laboratórios de desenvolvimento de aplicativos para celulares na Universidade Federal do Recôncavo Baiano com alunos de Escola Pública de Cachoeira e São Félix, na Bahia, e processos continuados com dez meses de duração para desenvolvimento de jogos em cursos profissionalizantes realizados no espaço do centro cultural.
Como resultado desse longo processo, o jogo atualmente conta com seis fases desenvolvidas em seu portal web e um, que corresponde a histórias de seis Orixás segundo preservadas pelas histórias orais nas casas de culto de matriz africana, e um aplicativo para Android, que se baseia na história de um sétimo Orixá. Para além do desenvolvimento econômico dos participantes nos laboratórios – que tiveram sua renda ampliada no decorrer dos processos educacionais, fossem monitores ou aprendizes – salientou-se a potência da ferramenta na manutenção da oralidade como presente na tradição ancestral de matriz africana e no processo de diversidade de atores na construção dos jogos, que perpassa um intenso debate sobre o respeito às religiosidades, o combate ao racismo, e os desafios socioeconômicos das comunidades periféricas do país.
O último dia de atividade foi focado em propor uma forma de constituir, com a participação de diversos atores sociais da cidade de Ribeirão Preto, um laboratório Contos de Ifá para a produção de artefatos digitais. Para além da conversa realizada na unidade do SESC durante os horários estipulados, parte da turma também visitou terreiros de matriz africana e líderes espirituais e comunitários locais, no intuito de tecer uma rede que se torne possível uma interação entre atores do território nacional na busca por inovações tecnológicas que tragam em seu universo o complexo emaranhado capaz de proporcionar, ao mesmo tempo, o desenvolvimento econômico e de uma ética social que propicie respeito ao ser humano e a todo o ambiente no qual ele se insere.
Referências Bibliográficas
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas da população residente nos municípios brasileiros com data referência em 1º de julho de 2016. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2016/estimativa_dou.shtm>. Consultado em 30 de agosto de 2016.
SESC, Caderno de Programação Setembro. SESC, 2016. Disponível em
DACST (Department of Arts, Culture, Science and Technology). White paper on science & technology: Preparing for the 21st century. Pretoria: Department of Arts, Culture, Science and Technology; 1996.
SCHIAVO, Ester; DOS SANTOS NOGUEIRA, Camilla; VERA, Paula. Entre la divulgación de la cultura digital y el surgimiento de los laboratorios ciudadanos: El caso argentino en el contexto latinoamericano. Rev. iberoam. cienc. tecnol. soc., Ciudad Autónoma de Buenos Aires , v. 8, n. 23, p. 179-199, dic. 2014 . Disponível em <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1850-00132014000200011&lng=es&nrm=iso>. acessado em 12 out. 2016.
Tim G.B. et al . Revealing the social face of innovation. S. Afr. j. sci., Pretoria , v. 111, n. 9-10, p. 01-06, Oct. 2015 . Disponível em <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0038-23532015000500014&lng=en&nrm=iso>. acessado em 13 Oct. 2016. http://dx.doi.org/10.17159/SAJS.2015/20140126.